domingo, 19 de julho de 2009

Eça de Queiroz - Primo Basílio (fragmentos, pág. 223 a 231)

(...) Era o bilhete que Luísa escrevera a Basílio:
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“Por que não vens?... Se soubesses o que me fazes sofrer!...”
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Teve-o um momento na mão, mordendo o beiço, o olhar fixo num cálculo agudo; por fim tornou a metê-lo na algibeira de Luísa, dobrou o vestido, foi estendê-lo com muito cuidado na causeuse.
Enfim, mais tarde, sentindo o cuco dar horas, decidiu-se a ir dizer a Luísa, com uma voz meiga:
- São dez e meia, minha senhora!
Luísa, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Basílio:
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“Não pudera – escrevia ele – estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava".
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Mal dormira! Erguera-se de manhã muito cedo para lhe jurar que estava louco, e que punha a sua vida aos pés dela.
Compusera aquela prosa na véspera, no Grêmio, às três horas, depois de alguns robbers de whist, um bife, dois copos de cerveja e uma preguiçosa da Ilustração.
E terminava, exclamando:
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- “Que outros desejem a fortuna, a glória, as honras, eu desejo-te a ti! Só a ti, a minha pomba, porque tu és o único laço que me prende à vida, e se amanhã perdesse o teu amor, juro-te que punha um terno, com uma boa bala, e esta existência inútil!”
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- Pedira mais cerveja, e levara a carta para a fechar me casa, num envelope com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito.
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E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações.
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Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias... em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido no olhar; - seria verdade então o que dizia Leopoldina, que “não havia como uma maldadezinha para fazer a gente bonita?” . Tinha um amante, ela!
E imóvel no meio do quarto, os braços cruzados, o olhar fixo, repetia: tenho um amante! Recordava a sala na véspera, a chama aguçada das velas, e certos silêncios extraordinários em que lhe parecia que a vida parara (…)
Que requintes teve nessa manhã! Perfumou a água com um cheiro de Lubin. Escolheu a camisinha que tinha melhores rendas. E suspirava (…) Porque nos temperamentos sensíveis as alegrias do coração tendem a completar-se com as sensualidades do luxo: o primeiro erro que se instala numa alma ate aí defendida, facilita logo aos outros entradas tortuosas; - assim, um ladrão que se introduz numa casa vai abrindo sutilmente as portas à sua quadrilha esfomeada.(…)
Luísa, depois do almoço, veio para o quarto estender-se na causeuse, com o seu Diário de Notícias. Mas não podia ler. As recordações da véspera redemoinhavam-lhe na alma a cada momento, como as folhas que um vento de outono levanta a espaços dum chão tranqüilo: certas palavras dele, certos ímpetos, toda a sua maneira de amar... E ficava imóvel, o olhar afogado num fluido, sentindo aquelas reminiscências vibrarem-lhe muito tempo, docemente, nos nervos da memória. (…)
Luísa, sobressaltada, tinha tapado a folha de papel com a mão.
- Que espere.
E continuou:
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...Que tristeza que fosse a carta e que não fosses tu que ali estivesses! Estou pasmada de mim mesma, como em tão pouco tempo te apossaste do meu coração, mas a verdade é que nunca deixei de te amar. Não me julgues por isto leviana, nem penses mal de mim, porque eu desejo a tua estima mas é que nunca deixei de te amar e ao tornar a ver-te, depois daquela estúpida viagem para tão longe não fui superior ao sentimento que me impelia pra ti, meu adorado Basílio. Era mais forte do que eu (…) Ontem, quando aquela maldita criada me veio dizer que tu vinhas despedir... fiquei como morta; mas quando vi que não, nem sei, adorei-te! E se tu me tivesses pedido a vida, dava-te, porque te amo, que eu mesma, me estranho... Mas para que foi aquela mentira, e para que vieste tu? Mau! Tinha vontade de te dizer adeus para sempre, mas não posso, meu adorado Basílio. É superior a mim. Sempre te amei, e agora que sou tua, que te pertenço corpo e alma, parece-me que te amo mais, se possível...
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- Onde está ela? Onde está ela? - disse uma voz na sala.
Luísa ergueu-se, com um salto, lívida (…) Amarrotou convulsivamente a carta, quis escondê-la no bolso! E desvairada, sem reflexão, arremessou-a para o sarcófago. Ficou de pé, esperando, as duas mãos apoiadas á mesa, a vida suspensa. (...)
Luísa deixou-se cair no fauteuil, branca e fria, disse com um sorriso cansado:
Estava a escrever, deu-me uma tontura (...).

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