"(...) O eterno recomeço presume que houve um fim. Mas o fim não se anunciou, o fim não findou. O fim fingiu, transformou-se, se extraviou entre nós para seguir. Sentimos isto pelo peso das manhãs que se dividem entre o amor e o tédio, entre o álcool e os poemas, entre as promessas de futuro e o passado sempre refeito. Para nós que somos jovens, a verdade é que a águia está em nosso fígado e a pedra em nosso ombro. E é verdade que há desassossego e há um constrangimento amadurecido se entranhando onde o vento voa, sobre o chão que é comum a todos e fervilha. O sol em nós revira e a escuridão não cede. Os panos estão frios e o que estava embaixo deles veio à tona. (...)E vem a lua brilhar nossas unhas de arranhar amuradas, brilhar nossas pernas e nossos pés cor de estrelas. Não estamos, mesmo assim, mais cansados. Saltamos mais uma vez dentro do olho veloz do descentrado ciclone (...) reinventando nossos caminhos.E vamos fazendo barulho já que nos cabe sacudir o pó no imenso tapete da história e varrer o charco frio até onde os olhos alcançam. Damos a mão, em meio à noite, aos pesadelos sem reparos e vamos para junto da pilha dolorosa dos remorsos e dos medos e descemos as escadas que nos levam ao ainda mais escuro, mais sem ar, ao mais instantâneo dos desabrigos: ao crítico desespero que desce da lágrima e se levanta para o assombro. São milhões os que não comem. São milhões os que não podem saber. São milhões os que não sabem, de fato o que está se passando enquanto o desencanto é disseminado.
E mesmo por isto, é preciso ordenhar esta pedra oca e suas gêmeas tetas que nos são oferecidas antes e depois do túnel, para que algo fisgue nossa consciência crispada e um arrepio irrigue nossa pele quando formos vistos caminhando (...). É nos seus lábios que tocamos, entre a ferrugem da doce (...) saliva (...); e são seus olhos que fechamos, hirtos e trêmulos, quando tateamos nas paredes do labirinto (...). Assim, tudo em nós indica que já basta. A pedra da ordenha, aquela que dá leite talhado e salobro, é a que carregamos às costas como Sísifo. Tudo o que tocamos, derramamos. E o que derramamos não tem remédio e nem remediado está. Pisoteamos não apenas no que resta - nas migalhas dos nosso sonhos e na utopia tênue - mas na possibilidade também dos nossos restos ainda restarem. Da nossa horda, da nossa tribo, surgiu a pele do cordeiro e o corpo do lobo alucinado. Em sua mirada estão os olhos que nos cabem olhar, para entender que o mito (...) vai transgredir noite à dentro. E vai beber da água proibida. E vai cheirar o céu no espelho. Para encurtar as distâncias enquanto as pedras continuam rolando. É a fome do corpo e do espírito que está nos rondando e a ela se deve uma resposta que todos os calendários rodando não conseguiram dar.
Por conta desta fome de sentido, muitos de nós permitiram que os dias e noites passassem como folhas em branco. Nó na garganta da noite, de braço com o desterro, soluçamos tantas vezes acuados pela dúvida: (...) os cílios cintilantes de nossos amores, irão dominar nossa fera sem sono? Os que perderam sua juventude, já não se colocam dúvidas. Caíram em uma armadilha aconchegante onde não queriam estar e de onde não podem mais sair. O malogro o suplantou. A mediocridade os nivelou. Olhamos para eles, (...) e vemos que, de perto, eles são normais. Foi por isto que (...) cedeu à tentação da pólvora e tudo o que ela impulsiona. (...) recortavam o conformismo e não cederam aos padrões (...) não queria ser transformado em um sonâmbulo e sua estrada recém se anunciava pela poeira (...). A pedra da vida que se ordenha pesou demais sobre seus ombros de Sísifo exaurido.
Todos nós levamos às costas, por nós e por todos os que se despedem e se anunciam, o pó, a caliça, o ferimento caloso da experiência, prosseguida e perseguida, sem sabermos por quanto tempo. Desejamos durar enquanto durar a águia e a pedra e isto é só um desejo. Mas o que é maior ou menor que um desejo? Todos nós carregamos os destinos esquecidos, o lamento dos atordoados pássaros abatidos na madrugada, o ranger de dentes nos manicômios, a sinfonia dos ossos nos cárceres, o choro dos homens e das mulheres. Lutar contra esta herança já é o bastante (...). Já é um sentido, se temos fome.
Quando o poeta russo Sierguéi lessiênin se matou, escreveu com o sangue dos pulsos o poema "Até logo, companheiro". Na última estrofe ele diz: "Adeus amigo, sem mãos nem palavras. /Não faças um sobrolho pensativo/ Se morrer, nesta vida, não é novo/ Tampouco há novidade em estar vivo/." Maiakovsky lhe respondeu dizendo: "É preciso arrancar alegria ao futuro /Nesta vida, morrer não é difícil./ O difícil é a vida e seu oficio." Talvez, para que seja possível prosseguir vivendo, devamos unir os Sísifos (...) lutar por um mundo melhor, compartilhar com tantos outros pulsos o desejo de rolar esta pedra até o cume, para recomeçar tantas vezes quantas forem necessárias, é só uma forma de inventar a vida, de atribuir a ela um sentido radicalmente humano. A todos nós, cabe arrancar a alegria dos dias que virão, tornando-a presente e concreta, como a névoa de um bar, como o orvalho sobre a relva, como a primavera em nosso olhos."
Marcos R. 1998.
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